Reinaldo da Silva Guimarães1 Resumo:
Chamamos a atenção para este fato porque o consideramos um exemplo bastante significativo e paradigmático para o tema que iremos abordar, na medida em que através dele podemos visualizar a realidade e trazer à luz a existência de códigos e critérios de distinção implícitos nas relações sociais mais amplas no contexto sociocultural brasileiro, como expressão desta cultura política, que funcionam como instrumentos que obstaculiza uma maior representatividade da população negra no mercado de trabalho em posições prestigiosas da hierarquia social. Nossa perspectiva é apontar que alguns instrumentos ideológicos classificatórios definidores de hierarquias e subalternidades entre as diferentes raças surgidas a mais de quinhentos anos com a colonização das Américas, apesar das mudanças ocorridas nas relações políticas, sociais, econômicas e culturais nas últimas décadas, persistem ainda em se manter, prejudicando a construção de uma identidade racial negra, a ampliação da cidadania e a efetiva democratização da sociedade Brasileira. No que se segue procuraremos demonstrar como se configura a questão do racismo no contexto sociocultural brasileiro, sob um ponto do que Fernand Braudel (1992b, p.51) chama de estruturas históricas de longa duração, isto é, estruturas que refletem “velhos hábitos de pensar e agir, quadros resistentes, duros de morrer, por vezes, contra toda lógica”.2 Na perspectiva analítica empreendida por Fernand Braudel, os ritmos da duração permitem identificar a velocidade em que as mudanças ocorrem e como nos acontecimentos estão inseridas várias temporalidades: na curta duração, a dos acontecimentos breves, com data e lugar determinados; na média duração, no decorrer da qual se dão às conjunturas, tendências políticas e/ou econômicas, que, por sua vez, se inserem em processos de longa duração, com permanências e mudanças que parecem imperceptíveis. Um exemplo significativo para se compreender os ritmos da duração como exposto por Braudel é a escravidão africana brasileira. Nossa história aponta que a abolição da escravidão ocorreu no dia 13 de maio de 1888, como um acontecimento breve, datado e localizado no espaço, podendo ser explicado pela conjuntura econômica da expansão da cafeicultura de exportação com necessidades urgentes de ampliação de mão-de-obra e pela conjuntura política e social que forçava rearticulações no grupo do poder monárquico e criava oposições ao regime, principalmente pelos republicanos. Não obstante, para se compreender este acontecimento e a forma como ocorreu, faz-se necessário que o situemos no processo estrutural, em temporalidades mais longas: no processo de mudanças do sistema capitalista, desde sua constituição histórica, e na longa duração do racismo. Com efeito, este processo explica não só a permanência até hoje de preconceitos e discriminações em relação às populações negras e mestiças, mas também a origem da própria escravidão, baseada em conceitos de raça superior e inferior criados por sociedades que pretendiam dominar e explorar outros grupos humanos. Contudo, a escravidão não cria o racismo, mas o tem como pressuposto. Por este aspecto, podemos estabelecer relações entre as durações, a constituição da memória e das identidades sociais, especialmente na conjuntura de longa duração, para se perceber e reavaliar os valores do mundo de hoje, a distinção de diferentes ritmos de transformações históricas, o redimensionamento do presente na continuidade com os processos que o formaram e a construção de identidades com as gerações passadas. Mas, tratar a questão do racismo como uma estrutura história de longa duração não significa afirmar que ela não englobe ou não tenha sofrido mudanças ao longo do tempo. Ao contrário, ela envolve uma dialética entre permanência e mudança, por isso mais difícil de ser detectada3 . A sobrevivência do Racismo em sociedades democráticas contemporâneas decorre da construção de uma Memória Coletiva utilizada como fonte de preservação do poder, significando um conjunto de valores, crenças e práticas transmitidas ao longo do tempo. Contudo, deve-se ressaltar que este tipo de memória não se diferencia de forma alguma da memória individual, posto que são os indivíduos que interagem entre si e partilham significados coletivos comuns, que se lembram do passado. Esta dicotomia, apenas para situarmos brevemente a discussão, aparece nos escritos de Frederic Charles Bartlett e Maurice Halbwachs4 . Para Halbwachs, comportamento, pensamento e memória dos indivíduos eram aspectos que precisavam ser compreendidos como resultado de socialização e não como resultado de processos individuais e subjetivos; assim, memórias sobre o passado, por mais que pareçam individuais, baseia-se em estruturas sociais que antecedem os indivíduos (Santos, 2000, p. 93). Por sua vez, as análises de Bartlett referem-se à construção social da memória por indivíduos em interação social, e apontam para as diferentes possibilidades de reconstrução social do passado pelo presente. Segundo este autor, a memória é uma função que ocorre no interior de um grupo social e está intimamente ligada à percepção, à imaginação e ao pensamento construtivo. Ou seja, para se compreender a memória não se pode partir do individuo singular, mas dos indivíduos em interação. A partir deste pressuposto básico de que a memória não é uma condição de indivíduos isolados, mas de indivíduos em sociedade, se estabelece que a memória faz parte do processo de conhecimento e reconhecimento do mundo, e que este processo se define pela busca de sentido, como um processo ativo de reorganização do passado como resultado de uma forma de reconhecimento ou identidade de imagens do presente com traços armazenados na mente humana (Santos, 2000, pp. 98-99). Compreender esta estrutura significa compreender também porque o racismo se mantém no presente e se revela através de uma estrutura mental potencializada pela memória da diferença racial, ou seja, como a “marca” sobrevive e se reforça através da lembrança de sua “origem”. De fato, como veremos mais adiante, mesmo com a tentativa de se definir diferenças raciais em outros termos, cor e etnia, por exemplo, a idéia básica baseada na diferença racial estabelecida no momento da colonização do Brasil permanece e se reforça a partir da sua própria negatividade e silenciamento. Com efeito,
Segundo Nascimento, a negação e o silêncio em torno da questão do racismo se dão através de um dos processos através do qual este se “manifesta” no contexto sociocultural brasileiro, isto é, se revela através de um processo que transforma a idéia original de raça, “a partir do esvaziamento do conteúdo racial das relações discriminatórias para uma perspectiva de neutralidade baseada em uma hierarquia racial de escala gradativa de cor e prestigio que classifica pela “marca” ou pelo fenótipo, de origem racial ou étnica, portanto, não-racista” (Nascimento, 2003, pp. 46-47). Portanto,
Não obstante, uma discussão sobre o racismo deve ter como preâmbulo uma breve fundamentação do conceito de raça, pois iluminará a discussão subseqüente e colocará em termos mais amplos o sentido que este conceito assumiu no passado e o que assume no presente, ou seja, como se configurou e como se configura em nossa sociedade nos dias de hoje. Desta forma, apresentamos algumas das diversas definições do conceito de raça e em seguida de racismo presente na literatura sobre o assunto, não de maneira extensiva, mas para apontar algumas discussões que se nos revelam sua longa duração. Com efeito, o conceito de raça deve ser entendido como um constructo social, que engloba em sua constituição histórica uma dimensão que é também biológica, não no sentido de que seja uma realidade que explique a diversidade humana e a divida em raças estanques (Munanga, 2004, p.22), mas no sentido de que produz a legitimidade dos efeitos da classificação racial universal estabelecido no século XVI, a partir de uma concepção baseada nas relações de poder que se estabeleceu no mundo com o colonialismo e que gerou um padrão de poder e de distinção hierárquica entre as raças, e conseqüentemente um sistema definidor de subalternidades. Para compreender o processo de longa duração do racismo, uma contribuição importante nos é dada por Aníbal Quijano (2001). Para ele, raça é uma categoria metal da modernidade que surge no contexto da constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado, estabelecendo um novo padrão de poder mundial, configurado a partir de dois eixos fundamentais: por um lado, com a colonialidade do poder, isto é, o estabelecimento de um padrão de classificação social da população mundial sobre a idéia de raça, como uma construção mental que expressa esta dominação colonial e, por outro, a articulação de todas as formas históricas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, em torno do capital e do mercado mundial. Quijano ressalta, entretanto, que o entendimento do termo “colonialidade” e seu significado não se confunde com o termo “colonialismo”, já que ambos se referem a fenômenos e questões diferentes. O “colonialismo” não se refere à classificação social universalmente básica que existe no mundo há 500 anos, mas à dominação político-econômica de alguns povos sobre outros e é milhares de anos anterior à colonialidade. No entanto, ambos os termos estão relacionados, já que a colonialidade do poder não teria sido possível historicamente sem o específico “colonialismo” imposto ao mundo a partir do século XVI. (Quijano, 2002, p. 23). De fato, a idéia de raça em seu sentido moderno não tem história conhecida antes da América. A formação de relações sociais fundadas nesta idéia produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros, e mestiços, redefinindo outras, espanhol e português, mais tarde, europeus. Nesse processo, à medida que as relações sociais se configuravam em relações de dominação, tais identidades foram associadas a hierarquias, lugares correspondentes, como constitutivas dessas identidades e, em conseqüência, ao padrão de dominação colonial que se estabelecia. Assim,
Um outro aspecto importante relacionado a novas identidades históricas é o fato de que estas foram associadas à nova estrutura global de controle do trabalho. Assim, ambos os elementos, raça e divisão do trabalho, ficaram estruturalmente associados e reforçando-se mutuamente, apesar de nenhum dos dois serem necessariamente dependente um do outro para existir e se relacionar. Desse modo, a distribuição racista de novas identidades sociais foi combinada com uma distribuição racista do trabalho e das formas de exploração do capitalismo colonial. Isto se expressou, sobretudo, em uma quase exclusiva associação da branquitude social com o salário e por definição com os postos de mando da administração colonial. Com efeito,
De fato, afirma Quijano, esta classificação racial da população e sua posterior associação às formas de trabalho não assalariado, desenvolveu entre os europeus brancos a específica percepção de que o trabalho pago era privilégio dos brancos, resultando que a inferioridade racial dos colonizados implicava que não eram dignos de pagamento de salário. Assim, no contexto da colonialidade do poder na América, a escravidão foi deliberadamente estabelecida e organizada como mercadoria para produzir mercadoria para o mercado mundial e, desse modo, para servir as necessidades do capitalismo. Esta mesma racionalidade esta presente ainda hoje nas relações trabalhistas baseadas nestas distinções, ou seja, salário menor para as raças inferiores por igual trabalho dos brancos (Quijano, 2001, p.208). Quijano aponta ainda outro aspecto de suma importância, o fato de que, como parte do novo padrão mundial de poder, a Europa também concentrou sob sua hegemonia, em todas as formas de controle, a subjetividade, a cultura e, em especial, o conhecimento e a produção do conhecimento. Neste sentido, geraram uma operação metal de fundamental importância para todo o padrão de poder mundial, sobretudo nas relações intersubjetivas, criando uma nova perspectiva temporal de história e cultura imaginada como experiências e produtos exclusivamente europeus (Quijano, 2001, p.210). Com o estabelecimento da colonialidade do poder, a população dominada não só foi submetida às relações de trabalho, mas também foi submetida à hegemonia eurocêntrica na maneira de adquirir conhecimento, promovendo uma subordinação que não é somente étnica e racial, mas colonial e epistêmica. Por este aspecto, se apresenta como a cara oculta desta modernidade que manteve e mantém em silêncio epistêmico os saberes que foram subalternizados e rebaixados a formas de saber não espistêmico e acadêmico. Ao fundamentar na colonialidade do poder uma dimensão econômica da classificação racial, Quijano aponta uma questão importante para se entender como esta idéia classificatória e hierarquizada se propaga, mas também, para entender porque o seu produto, o racismo, persiste como elemento definidor de hierarquias e subalternidades nas sociedades pós-coloniais, dificultando tanto o processo de cidadanização quanto o processo de democratização. Neste sentido, o mais notável é que para uma grande maioria da população mundial, incluindo os opositores e as vitimas do racismo, a idéia mesma de raça, como um elemento da “natureza”, que tem implicações nas relações sociais, se mantenha virtualmente intocada em sua origem. Desse modo,
Quijano é enfático em afirmar que a descolonização do poder, qualquer que seja o âmbito concreto de referência, tem como ponto de partida a descolonização de toda a perspectiva do conhecimento. Com efeito, raça e racismo estão colocados, como nenhum outro elemento das modernas relações de poder capitalista, nessa decisiva encruzilhada. (Quijano, 2000, p.44). Assim, a idéia de raça como instrumento de dominação social e poder inventado nos últimos quinhentos anos, baseado na diferenciação identitária racial, trouxe para o âmbito das relações sociais cotidianas sua manifestação mais perceptível e onipresente e, por isso mesmo, o seu efeito mais perverso e conflitivo, o racismo. Uma outra abordagem de significativa importância ao entendimento dos conceitos de raça e de racismo, que nos dá a dimensão de sua manifestação histórica de longa duração, vem do recente artigo “Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia”, de Kabengele Munanga (2004). Sua abordagem é expressiva, não só em termos de sua gênese, mas também por colocar em termos analíticos a historicidade do conceito de raça, como também de seu produto, o racismo. Traçando o sentido genético do conceito de raça, Munanga descreve que em sua etimologia este conceito surge do italiano “razza”, derivado do latim “ratio”, significando sorte, categoria, espécie. Em sua longa história o conceito de Raça, foi utilizado pelas ciências naturais para classificar animais e vegetais. Posteriormente, assumiu uma dimensão temporal e espacial, e no latim medieval “passou a designar descendência, linhagem, ou seja, um grupo de pessoas que têm um ancestral comum e que possuem algumas características físicas em comum” (Munanga, 2004, p.17). Uma base importante para a transformação do conceito de raça e da conseqüente diferenciação humana ao longo da história foi o estabelecimento, no século XVIII, da cor da pele como critério objetivo e fundamental entre as chamadas raças. Assim, em uma classificação que persiste até hoje no imaginário coletivo e na terminologia cientifica, a espécie humana foi dividida em três raças estanques: raça branca, negra e amarela. Ainda para ampliar a classificação racial em grupos estanques, acrescentaram-se ao critério da cor outros critérios morfológicos como a forma do nariz, dos lábios, do queixo, do crânio, o ângulo facial etc. Tivemos ainda, com o progresso da genética humana, critérios químicos baseados no sangue para consagrar definitivamente a divisão da humanidade em raças estanques. De fato, observa Munanga que o cruzamento de todos os critérios deu origem a dezenas de raças, sub-raças e sub-sub-raças (Munanga, 2004, p.20). No entanto, observa este autor que várias pesquisas comparativas levaram à conclusão de que os patrimônios genéticos de dois indivíduos pertencentes a uma mesma raça podem ser mais distantes que os pertencentes a raças diferentes; um marcador genético característico de uma raça pode, embora com menos incidência, ser encontrado em outra raça. Assim, prossegue Munanga (2004), combinando todos esses desencontros, os estudiosos desse campo de conhecimento chegaram a conclusão de que raça não é uma realidade biológica, mas sim apenas um conceito cientificamente inoperante para explicar a diversidade humana e dividi-la em raças estanques. Ou seja, biológica e cientificamente, as raças não existem. Assim, na definição de Munanga, a noção de raça como empregada hoje nada tem de biológico. Ao contrário, se apresenta como um conceito carregado de ideologia, e como todas as ideologias, esconde uma dimensão não-reclamanda: a relação de poder e discriminação. De fato, afirma que o campo semântico do conceito de raça é determinado pela estrutura global da sociedade e pelas relações de poder que a governam. Acrescenta que no imaginário e na representação coletiva de diversas populações contemporâneas existem ainda raças fictícias e outras construídas a partir de diferenças fenótipicas como a cor da pele e outros critérios morfológicos. “É a partir dessas raças fictícias, ou raças sociais, que se reproduzem e se mantêm os racismos populares” (Munanga, 2004, p.22). Por este aspecto, o autor afirma que o racismo surge como uma crença na existência de raças naturalmente hierarquizadas pela relação intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o intelecto, o físico e o cultural. É justamente o estabelecimento da relação intrínseca entre caracteres biológicos e qualidades morais, psicológicas, intelectuais e culturais que desemboca na hierarquização das chamadas raças em superiores e inferiores. Desse modo, prossegue, o racismo é essa tendência que consiste em considerar que as características intelectuais e morais de um dado grupo são conseqüências diretas de suas características físicas ou biológicas. Este fato é corroborado com a narrativa que faz da origem mítica e histórica do racismo. Segundo sua narrativa esta origem deriva do mito bíblico de Noé do qual resulta a primeira classificação religiosa da diversidade humana entre os três filhos de Noé, ancestrais das três raças: Jafé (ancestral da raça branca), Sem (ancestral da raça amarela) e Cam (ancestral da raça negra). Este último amaldiçoado pelo pai por ter emitido comentários maldosos quando o viu em posição indecente, momento em que Noé lhe disse: seus filhos serão os últimos a ser escravizado pelos filhos de seus irmãos. (Munanga, 2004, p. 25). A propósito deste fato, um importante texto citado por Nascimento, será esclarecedor:
Outra origem do racismo identificada pelo autor se assenta na classificação dita científica derivada da observação dos caracteres físicos (cor da pele, traços morfológicos). De fato, segundo ele, este é um dado importante, posto que desloca uma explicação na qual Deus e o livre arbítrio constituíam o eixo central da divisão da história humana, para um novo tipo, no qual a biologia se erige em determinismo racial e se torna a chave da história humana. Segundo Munanga, a partir dos anos 70, um outro importante deslocamento acontece na concepção de racismo: o avanço das ciências biológicas (genética humana, bioquímica, biologia molecular) fizeram desacreditar na realidade científica da raça. De fato, já no fim do século e inicio do atual, o racismo não precisa mais do conceito de raça no sentido biológico para decretar a existência das diferenças insuperáveis entre grupos estereotipados. Assim,
A propósito deste fato, o autor afirma que o Racismo praticado nas sociedades contemporâneas não precisa mais do conceito de raça ou da variante biológica, se reformulando através dos conceitos de etnia, diferença cultural ou identidade cultural; no entanto, as vítimas de hoje são as mesmas de ontem e as raças de ontem são as etnias de hoje. Por este aspecto, “o que mudou, na realidade, são os termos ou conceitos, mas o esquema ideológico que subentende a dominação e a exclusão ficou intato”. (Munanga, 2004, p. 29). A discussão sobre o racismo é muito ampla e complexa, composta por várias interpretações, que incluem desde a questão da miscigenação, que incide diretamente na questão do embranquecimento; a questão da eugenia, diretamente ligada a pureza de sangue e a questão simbólica da representação da identidade cultural negra, que influência diretamente na construção dos estereótipos e estigmas. Com efeito, apesar desta complexidade, podemos trazer o que compreendemos como um dos mais importantes e nocivo aspecto da maneira como se “manifesta” o racismo na sociedade brasileira, a transformação do negro brasileiro em “branco virtual” (Nascimento, 2003). O ideal de embranquecimento como um traço específico da manifestação do racismo na sociedade brasileira tem obstaculizado a discussão sobre a questão racial no Brasil, e dificultado o reconhecimento efetivo do racismo como um meio de distinção e poder, destituindo a importância racial das desigualdades e influindo de maneira negativa na construção de uma cidadania mais ampla e na consecução de políticas públicas voltadas à ampliação da participação dos negros na vida do país. Para Nascimento (2003, p. 129), esta teoria verteu-se na convicção de que as elites ibéricas tivessem criado uma maneira cordial e harmoniosa de relações raciais baseada na mestiçagem. Assim, dois corolários estão associados a esta noção: por um lado, a definição de que a escravidão africana na região foi uma instituição benevolente, em geral uma forma amena de servidão. Por outro, que a ausência de segregação racial determinada por lei, junto com a garantia constitucional da igualdade, bastam para caracterizar a sociedade como não-racista. Ainda segundo esta autora, o processo de encobrimento do racismo no Brasil constrói a figura do “branco virtual”, o mestiço desafricanizado identificado com os valores da sociedade ocidental, negando seu próprio racismo, projetando-o em um “outro” racista que não raro vem ser o próprio negro e o movimento social organizado. Assim, o “branco virtual” é o que assume e engaja-se, mesmo de forma inconsciente, nos processos do racismo calcado no Sortilégio da Cor5 . “Trata-se da hegemonia de uma identidade étnica invisível, silenciosa, que reina implícita como universal e imune ao questionamento”. (Nascimento, 2003, p. 383-384 ). Assim, prossegue, como instrumento de dominação e poder orquestrado pelo sortilégio da cor, o racismo na sociedade brasileira forjou uma identidade nacional calcada na rejeição do critério estabelecido pela ciência biológica, favorecendo a categoria cor divorciada da origem racial. Este processo se introjetou na consciência da nação, articulando-se ao discurso nacional e fundamentou um sistema social de profundas desigualdades raciais em um suposto paraíso de harmonia racial (Nascimento, 2003, p. 152). Com efeito, os valores embutidos na idéia inicial de raça como mecanismo de dominação e, conseqüentemente, como instrumento definidor de subalternidades operado no período de colonização das Américas, especialmente pelos aspectos ideológicos presentes no racismo brasileiro, caracterizado pela sua ambigüidade, a partir do ideário do branqueamento têm dificultado a criação de uma identidade racial negra, na medida em que “esse ideal prejudica qualquer busca de identidade baseada na negritude e na mestiçagem, já que todos sonham ingressar um dia na identidade branca, por julgarem-na superior” (Munanga, 2004, p. 16). Assim,
Por fim, como uma estrutura histórica de longa duração permite de tempos em tempos que se operem mudanças nas sociedades, mesmo lenta e quase imperceptível, vemos atualmente, baseados em nossa experiência e discussões, que a luta pela ampliação das oportunidades de ingresso de estudantes negros nas universidades, possibilitada pela implementação das ações afirmativas, tanto no seu sentido político com a atribuição de cotas quanto em termos de ação social empreendido pelas redes de solidariedade, através dos pré-vestibulares comunitários e populares em rede, tem procurado modificar a realidade de subalternidade imposta à população negra ao longo dos séculos. Em função disto, podemos constatar que a própria construção de uma identidade negra, assim como a busca pela transformação da cultura política brasileira, tem ampliado o nível de consciência da população negra que esta denegrindo6 cada vez mais, ou seja, mesmo aqueles negros que se percebiam como quase brancos ou “brancos virtuais”, estão assumindo sua identidade negra e reivindicando o direito à igualdade de oportunidades baseada nesta específica identidade, na medida em que procuram ampliar a representatividade da população negra em posições mais prestigiosas no mercado de trabalho, contexto no qual mais se pode observar a “manifestação” do racismo no Brasil. Referências bibliográficas BRAUDEL, Fernand. Reflexões sobre a história. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1992. ____________. Escritos sobre a história. Segunda edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992b. GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e anti-racismo no Brasil.. São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo, Ed.34, 1999. GUIMARÃES, Reinaldo da Silva. A Dimensão Afirmativa das Ações: uma articulação possível entre igualdade de oportunidades e valorização social. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: IUPERJ, 2001. ____A dimensão afirmativa das ações: uma perspectiva analítica e a experiência do PVNC. In: FONSECA, Denise (Org.). O Social em Questão. Revista do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-Rio. Vol. 10, número 10, ano VII, 2º semestre de 2003. MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. Cadernos PENESB. Niterói; EdUFF, 2004, p.17-34. NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. In: O Brasil na mira do pan-africanismo. Salvador: Ceao/Edufba, 2002. NASCIMENTO, Elisa Larkin. Sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil. São Paulo: Summus, 2003. QUIJANO, Anibal. Que tal raza! Ver. Venez. De de Economia y Ciencias. Vol. 6, N 1, (ene- abr), p.37-45, 2000. Acessível por www.revele.com.ve/pdf/revista_venezolana. Acessado em 10/05/2005. ___________. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. NEPLANTA Vol.1 N.3. . Acessível por: http://muse.jhu.edu/journal/replanta/toc/nep1.3.html , versão em espanhol, 2001. __________. Colonialidade, poder, globalização e democracia. Novos Rumos.Ano 17, N.27, p. 1-25, 2002. SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Teoria da memória, teoria da modernidade. In: AVRITZER, Leonardo; DOMIGUES, José Maurício (Orgs). Teoria social e modernidade no Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.
|